quinta-feira, 26 de março de 2009

162 - " OS ETERNOS MOMENTOS DE POETAS E PENSADORES DA LINGUA PORTUGUESA "



ANTÓNIO BARBOSA BACELAR
Nasceu em 1610, em Lisboa, Portugal.
Bacharel em Direito Civil, Universidade de Coimbra,
Portugal . . .
Faleceu 15 de fevereiro de 1663, Lisboa, Portugal.
Estilo barroco
*
CANTOePALAVRAS
Desafio Venturoso . . .
*
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta,
O mal, que me consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado:
-
Ando sem me mover, falo calado,
O que mais perto vejo se me ausenta,
E o que estou sem ver mais me atormenta,
Alegro-me de ver-me atormentado:
-
Choro no mesmo ponto em que me rio,
No mor risco me anima a confiança,
Do que menos se espera estou mais certo;
-
Mas, se, de confiado, desconfio,
É porque, entre os receios da mudança,
Ando perdido em mim como em deserto.
*
ANTONIO BARBOSA BACELAR
"A uma Ausência"
Soneto
GOMES LEAL
António Duarte Gomes Leal
Nasceu a 06 de junho de 1848, signo de gemeos.
Lisboa, Portugal.
Fundador do jornal"O Espectro de Juvenal",1872
e "O Século", 1881, e outros mais.
Estilo romantismo.
Faleceu 29 de janeiro de 1921, Lisboa, Portugal.
*
CANTOePALAVRAS
A Fome de Camões, 1870; O Tributo do Sangue, 1873;
A Canalha, 1873; Claridades do Sul,1875;
A Traição, 1881; A Morte do Atleta, 1883;
Troça à Inglaterra, 1890; A Senhora da Melancolia, 1910 . . .
*
1
Ninguem soletra mais vossos mysterios
Grandes letras da noite! sem cessar . . .
ó tecidos de luz! rios ethereos,
olhos azues que amoleceis o mar! . . .
-
O que fazeis dispersas pelo ar?! . . .
E ha que tempos ha já, fogos siderios,
que ides assim como uns brandões funereos
Que levaes o Deus Padre a sepultura?!
-
Ha que tempos, dizei! - Ha muitos annos?! . . .
E, com tudo, astros santos, deshumanos,
A vossa luz é sempre clara e egual!
-
Ha muito, que sois bons, castos, brilhantes! . . .
-Mas, também . . .ó crueis! sempre sistantes . . .
Como dos nossos braços o Ideal!
*
GOMES LEAL
"Cartas às Estrelas"
Claridades do Sul
(Mais Poemas . . ."Os Eternos Momentos de Poetas e
Pensadores da Lingua Portuguesa", pág. 15)
*
2
Dizia o ouro à pedra: ¨Ente mesquinho.
Que profundo cismar sempre te prega
À beira duma estrada ou dum caminho.
Pasmada, mas sem ver, eterna cega?
-
Em vão o orvalho a ti te lava e rega!
Em ti não cresce nunca pão nem vinho,
Dura e inútil - o lodo é teu vizinho,
E o homem só, por te pisar, te emprega.
-
Em ti só medra, e cresce o cardo, os lixos,
Tu serves só d'abrigo ao lodo e aos bichos
E ensangüentas os pés descalços, nus.
-
Oh! pedra! quanto a mim sou a riqueza"!
A cega disse então com singeleza:
- Eu também guardo no meu seio a luz!
-
GOMES LEAL
¨O Ouro¨
MANUEL LARANJEIRA
Nasceu 17 de agosto de 1877, signo de leão.
Vila da Feira, Província Douro Litoral, Portugal.
Faleceu 22 de fevereiro de 1912.
*
CANTOePALAVRAS
. . . . . . . . . . . . . . . . .
*
Ânsia de amar! oh ânsia de viver!
uma hora só que seja, mas vivida
e satisfeita . . . e pode-se morrer
- porque se morre abençoando a vida!
-
Mas ess'hora suprema em que se vive
quando possa sonhar-se de ventura
Oh vida mentirosa, oh vida impura
esperei-a, esperei-a, e nunca a tive!
-
E quantos como eu a desejaram!
E quantos como eu nunca tiveram
uma hora de amor como a sonharam!
-
Em quantos olhos tristes tenho eu lido
O desespero dos que não viveram
Esse sonho de amor incompreendido!
*
MANUEL LARANJEIRA
"A Tristeza de Viver
PEDRO GUISADO
Alfredo Pedro Guisado
Nasceu a 30 de outubro de 1891, signo de escorpião
Lisboa, Portugal. Doutorou-se em Direito , na Universidade
de Lisboa, 1922 . . .
Faleceu em 1975.
*
CANTOePALAVRAS
A Lenda do Rei Boneco, 1912; Xente de Aldea, 1912;
A 13 Baladas das Mãos Frias,1916; Mais Alto,1917;
Autôra, 1918. . .
*
I
Numa noite me levaram
Ao circo, onde trabalham
Cavalinhos que dançam
E lindos cães que ensinaram.
-
Macacos brincando em bolas
Que rolavam sem cair,
Palhaços com altas golas
Que choravam a fingir . . .
-
Ao regressar, no caminho,
Eu já trazia saudades . . .
E era - nos meus gestos vãos -
-
Cada dedo, um cavalinho
A fazer habilidades
No circo das minhas mãos.
*
PEDRO GUIZADO
"O Circo"
*
II
Incenso, asas pedrarias,
Mãos erguidas a rezar . . .
Mais longe, lanças esguias,
Compridas, quietas, frias,
E em cima, em pálio, o luar.
-
E que vão chegando os reis.
Brilham couraças e gumes.
Camelos, cofres, corcéis
Conduzem ao Rei dos Reis
Mil exquisitos perfumes.
-
E Em volta do Deus-Menino
Estão de joelhos as cores.
E ele inquieto e pequenino,
Prende num gesto divino
As orações dos pastores.
-
Entanto, a Noite absorta,
Vê chegar a caravana,
E, doente e quase morta,
Chega à beira da cabana,
Espreita por cima da porta.
-
E, ao ver o Menino-Deus,
Sua tristeza era vã.
Ergueu os braços aos Céus,
Caíram-lhe os negros véus.
Dela se ergueu a Manhã.
-
E a Lua, entrando, hesitou.
Nas lanças de ébano fino
Prendeu o olhar. Projectou
Sobre o peito do Menino
Uma cruz que o acordou.
*
PEDRO GUIZADO
"O Presépio"
MARQUES DA CRUZ
José Marques da Cruz
Fulgêncio Claro(pseudónimo)
Nasceu em 1888, Famalicão, perto de Leiria, Portugal.
Cursou Direito na Universidade de Coimbra, colou grau em 1912.
Viveu em São Paulo, desde 1912, onde advogou.
Alguns de seus poemas, transformaram-se em fados pelo
incrível fadista "António Menano", um dos maiores.
Faleceu em 1958.
*
CANTOePALAVRAS
Lis e Lena, 1911; Frei Luís do Coração de Maria, 1912;
Oração a Portugal, 1922; Redondilhas; Água da fonte;
Memórias de Fulgêncio Claro(novela, de "Fulgêncio Claro"),
1923; Vícios da Linguagem, 1919; Alma Lusa, 1935 . . .
*
I
Água da fonte
rumorejando
junto do monte, num murmúrio bramdo . . .
Sempre caindo
e rorejando
e refulgindo
e sorrindo
tanto . . .
em longo canto,
infindo . . .
longo . . .
lindo . . .
-
Por entre a terra dura e a areia fina,
e lama e pedras ríspidas, vieste
subindo e carregando a tua cruz . . .
e, agora, és clara e pura e cristalina
no esgorço que fizeste
de ver a luz.
-
É pela dor, pelo sofrer, que a alma
se torna pura e cristalina e calma.
-
Em fitas de água argênteas e fininhas,
entre musgos e heras e gavinhas
e descantes maguados,
a água mata a sede de avesinhas
e viandantes
e namorados . . .
e vai, depois, humilde, procurando
um leito baixo e bom, sempre em marulho . . .
mas, engrossando em rio, vem-lhe então
a túmida vaidade, o forte orgulho
resplendente,
que lhe estraga a Razão
completamente.
-
Depois, entra no mar
e empavona-se em ondas e espuma
branca, a espadanar . . .
e a água da fonte humilde vê então
que há uma força, que a levanta e apruma,
e há outra força, que a derruba ao chão.
*
Também o homem, que moureja e canta
em santa paz bucólica e bemdita,
às vezes cheio de ambições, levanta
castelos grandes de Ilusões florais . . .
e vai para o mar alto, onde se agita
em lutas coleantes e mortais,
entre a rábida güela fascinante,
e a praga regougante
e a garra rapinante
e a chicotada, em turbilhão, dos vendavais . . .
*
MARQUES DA CRUZ
"Água da Fonte"
Água da Fonte
*
II
Era uma vez um mouro de morena tez,
pálido, arisco,
de cílios longos e oleoso olhar,
que ergue, num belo "monte" alentejano,
um castelo mourisco, airoso e ufano,
de encantar . . .
-
Castelo que, de longe, era o perfil
de um menestrel sonâmbulo a tocar
o arrabil . . .
e, dentre as névoas, com rendado fino
de filós,
era um moreno e original "beduino"
de albornoz.
-
Castelo de bom gosto,
alto como a Vaidade,
rijo como o granito,
trigueiro como o rosto
de um árabe bonito
com saudade . . .
e, dentro, nos salões,
duas papoulas: - dois corações!
-
ELE - trigueiro, de alta estirpe, a fronte ufana;
ELA - uma loura "lusitana"
de tranças louras como espigas
de trigo feiticeiro;
- duas almas amigas,
duas flexíveis hastes
("avataras", talvez já muito antigas)
na atracção inflexível dos contrastes.
-
Moça garbosa e linda,
riso travesso,
olhos de azul-pervinca, faces côr de pêssego
como não vira ainda . . .
e, quando andava, a cinta fina requebrava
descompassada, lânguidamente,
que parecia
que se quebrava . . .
mas, logo, requebrava, de repente
com tal magia e sedução,
que quem na via
é que sentia
quebrado o olhar e o coração . . .
-
Porém a loura lusitana, o seu amor,
uma tarde finou-se;
e o mouro, então, ficou-se longos meses no terraço,
trémulo, amarfanhado pela dor,
olhando o espaço,
numa atonia,
lânguido, lasso . . .
até que um dia,
num fúlgido ímpeto de amor,
para mais de iludir, para sentir melhor
as tranças louras e o perfil esguio
do seu amor maior,
mandou plantar trigais em campos de "pousio",
por dezenas de léguas ao redor.
-
(de massa loura ou trigueira,
neste mundo existe um pão,
que se come a vida inteira,
com o nome de "Ilusão").
-
E, depois, quando em doces tardes estivais,
sob um céu de âmbar confidente,
a brisa punha nos trigais,
de galhardestes louros como tranças,
ondas redondas, lânguidas, mansas,
vinha-lhe à mente
a cinta fina que requebrava
descompassada, lânguidamente,
que parecia
que se quebrava . . .
mas, logo, requebrava, de repente,
com tal magia e sedução,
que quem na via
é que sentia
quebrado o olhar e o coração.
*
MARQUES DA CRUZ
"A Lenda dos Trigais
Alma Lusa
(Mais Poemas . . ."Os Eternos Momentos de Poetas e
Pensadores da Lingua Portuguesa", pág. 10; "FOLCLORE
. . .CANTOePALAVRAS", pág. XIII; "NEGRAS CAPAS . . . POETAS
DE COIMBRA", pág. 182; ". . . Donde borbota, minha Saudade . . ."
pág. 194.

ANTÓNIO BOTTO
António Tomás Botto
Nasceu em 17 de agosto de 1897, signo de leão.
Concavada, perto da cidade de Abrantes, Portugal.
Poeta . . .
Personagem marcante na Literatura Contemporânea
Portuguesa, e amigo de Fernando Pessoa, fez
parte da revista "Presença".
Homenagens: Instituido o Premio "António Botto"
Câmara Municipal de Abrantes, 1996.
1º. António Mota. . .
Faleceu em 16 de Março de 1959, Rio de Janeiro, Brasil.
*
CANTOePALAVRAS
Trovas, 1917; Cantigas de Saudade, 1918;
Cantares, 1919; Flor do Mal (teatro), 1919; Canções, 1921 a 1932;
Motivos de Beleza, 1923; Curiosidades Estéticas, 1924;
Pequenas Esculturas, 1925; Olimpíadas, 1927; Daudismo, 1928;
Alfam (teatro), 1933; Antonio (teatro), 1933;
Ciúme, 1934; Baionetas da Morte, 1936; Sonetos, 1938;
A Vida que te Dei, 1938; O Livro do Povo,1944;
As Canções de Antonio Botto, 1941;
Aqui ninguém nos ouve (teatro), 1942;
Ódio e Amor, (contos) 1947; Fátima - Poema do Mundo, 1955;
Ainda não se Escreveu, 1959 . . .
*
I
Amanhecer a chuva
-
Na vidraça, do meu quarto,
A bare, impertinente.
A chuva lembra uma queixa
Dolorosa, sem remédio!
Ninguém passa! Nesta rua
Moro eu e mora o tédio.
-
O vento atira com ela
De encontro à minha janela;

E ela, a chuva, batucando
Na vidraça do meu quarto.
-
fica escorrendo a alagando
Esta indecisa luz fria
Que põe sintomas de um véu
Negro e solto pelo céu!
-
E a chuva cai, não abranda,
Insiste, bate, fustiga,
E o dia avança e vai abrindo mais
O seu curso de lentas melodias
Diluídas no corpo da existência
Através de um rosário de ilusões.
-
São sempre assim estes dias
Tristíssimos como a história
De uma ansiedade partida!
-
Chuva, névoa, desconforto,
A imagem da minha vida!
*
ANTÓNIO BOTTO
"Dia de Chuva"
Ódio e Amor
II
Ouve meu anjo!
Se eu beijasse a tua pele?
Se eu beijasse a tua boca
onde a saliva é mel?
-
tentou, severo, afastar-se
Num sorriso desdenhoso;
Mas ali!
A carne do assassino
É como a do virtuoso.
-
Numa atitude elegante,
Misterioso, gentil
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febril.
Na vidraça da janela
A chuva, leve tinia . . .
-
Ele apertou-me cerrando
os olhos para sonhar
E eu lentamente morria
como um perfume no ar!
*
ANTÓNIO BOTTO
"Ouve Meu Anjo"
*
III
Envolve-me amorosamente
Na cadeia de teus braços
como naquela tardinha . . .
não tardes, amor ardente:
tem pena da minha mágoa,
vida minha!
-
Vai a penumbra desabrochando
Na alcova
Aonde estou aguardando
A tua vinda . . .
Não tardes, amor ausente
Anoitece. O dia finda . . .
E as rosas desfalecendo
Vão caindo e murmurando:
- Queremos que Ele nos pise!
Mas, quando vem Ele, quando? . . .
*
ANTÓNIO BOTTO
"Amor Ausente"
*
IV
Quem é que abraça meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito?
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
- És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.

...................................

Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: - a luz do dia!
- Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água - música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

............................................

Não me peças mais canções
Porque a cantar vou sofrendo;
Sou como as velas do altar
Que dão luz e vão morrendo.
Se a minha voz conseguisse
Dissuadir essa frieza
E a tua boca sorrisse!
Mas sóbria por natureza
Não posso renovar
E o brilho vai-se perdendo...
- Sou como as velas do altar
Que dão luz e vão morrendo.
*
ANTONIO BOTTO
Fragmentos
"As Canções de Antonio Botto"

JOAQUIM PAÇO D'ARCOS
Joaquim Belford Correia da Silva Paço d'Arcos
Nasceu 14 de junho de 1908, signo de gêmeos.
Lisboa, Portugal.
Romancista, dramaturgo, ensaísta, poeta . . .
Faleceu a 10 de junho de 1979.
*
CANTOePALAVRAS
Patologia da dignidade, 1928; Herói Derradeiro, 1933;
Amores e Viagens de Pedro Manuel, 1935;
Diário Dum emigrante, 1936; Ana Paula, 1938;
O Cúmplice, 1940; Ansiedade, 1940;
Estados Unidos, 1942; Neve Sobre o mar, 1942;
O Romance e o Romancista, 1946; O Ausente, 1944;
O Caminho da Culpa, 1944; Confissão e Defesa do
Romancista, 1946; Tons Verdes em Fundo Escuro, 1946;
Paulina Vestida de Azul, 1948; Eça de Queiroz e o
Século XX, 1949; Espelho de Três Faces, 1950;
O Navio dos Mortos e outras Novelas, 1952,
Poemas Imperfeitos, 1952 . . .
*
I
A neve, cobrindo o parque,
Cai fora e dentro de mim.
Leio livros que não me pertencem,
Vivo uma vida que me não pertence.
Saudades do que fui, do que não sou, do que hei-de ser . . .
-
Noites húmidas de África,
Tardes do Brasil,
Manhãs de Portugal ! . . .
E porque não pela ordem certa: manhãs, tardes, noites?
-
Aqui tudo é ordenado: a doença e a saúde,
A vida que desliza, a morte que não vem.
Cheiro discreto a medicamentos,
Cadeiras largas de repouso,
Dias iguais . . .
-
A montanha em leque, Pirenéus de neve.
A cidade triste, colorida de cinzento, em volta do Castelo.
E o dia tão cinzento, e a alma tão cinzenta . . .
-
Mesmo que tivesse uma caixa de tintas
E tivesse pincéis,
Não saberia dar outra cor
À cidade, ao Castelo, ao dia cinzento,
Porque não são as tintas que transformam
A cor sombria do meu coração.
*
JOAQUIM PAÇO D'ARCOS
Poemas Imperfeitos
*
II
Negra que vieste da sanzala
E na esteira, sobre o soalho, te estendeste,
Recusando o leito branco e macio;
Negra que trazias no corpo o cheiro do capim
E da terra molhada,
E o travo das queimadas;
Negra que trazias nos olhos castanhos
Sede de submissão,
Que tudo aceitastes em silêncio
E lentamente desnudaste o teu corpo . . .
-
Estátua de ébano,
Animada pelo sopro da lascívia
E pela febre do desejo;
Negra vinda das terras altas de Chimoio
À cidade que o branco plantou na beira-mar.
-
Vinda para te venderes . . .
Comprada a uma preta velha e desdentada,
A troco dum gramofone;
Vendida e trespassada de mão em mão.
-
Que é do pano branco de chita
Em que envolvias teu corpo
E escondias tua carne tremente
De tanta volúpia que guardava?
Que é da esteira gasta em que repousou teu corpo
E vibrou tua carne?
Onde vão as noites de África,
encharcadas de cacimba,
Impregnadas de álcool do hálito e dos beijos?
Luminosas, serenas . . .
-
Vinham do pátio as vozes em surdina
Dos teus irmãos em cor . . .
Vinham do mato os gritos roucos das hienas
E o choro lamentoso,
De acentos prolongados,
Tal o de meninos magoados . . .
-
Tu prendias-te a mim.
Abandonava-te na esteira
E, quando o dia surgia,
No soalho nu havia a esteira nua
E nada mais.
tinhas partido para a senzala,
Envolta no pano de chita branca
E no silêncio molhado da cacimba
Da noite transluzente e profunda.
Eu esquecia, saciado, o segredo do teu corpo.
Fazia por te odiar . . .
Mas, ao Sol escaldante do dia,
Queimava-me de novo,
Em ardência e secura,
A sede do teu corpo,
Até que a noite voltava,
Tudo aguando de cacimba . . .
E na esteira gasta
O teu corpo nu
Voltava a ser
Uma serpe negra . . .
-
Negra que vieste da senzala . . .
*
JOAQUIM PAÇO D'ARCOS
Poemas Imperfeitos
LUIS ALVES DA COSTA
Nasceu em Portugal . . .
Homenagens: Premio Revelação de Poesia(A.P.E./I.P.L.L.),
1986 . . .
*
CANTOePALAVRAS
Sebastian; Fragmentos Musicais, 1986 . . .
*
I
Assim foi que tudo começou
Grandeza ao alto
Aurora em terra
Brunido de aquários
Marteladas águas-marinhas
A alba branca;
Denotadas abertas portas
Claridade plena
Escancarada luz
Ao olhar se extravasa.
-
Como amei tudo ser assim!
Luz feita verdade
Vera luminosa face
Nesta abertura
Aquática escada escendente
Degrau claro
A claro degrau subindo
Camadas alvas
À luz se sobrepondo
Jogos de Villa d'Este
Festas glaucas
Luz encanecida
Banhando o todo luz.
-
Ao sentir-te contemplei
As tantas vezes
Que terei inúmero passado
Por ti sem te olhar
Tantas outras visões
Assim perdidas
Não mais sentidas
Sem nelas a elas ver
Como a ti te não notei.
-
Mas o teu Tempo é que era
Certo Tempo estava
O Tempo que falavas
Tempo livre de desjo,
Não o meu devir
Circunlóquio de educação errada
Cujas viseiras
O Ocaso me taparam
Ocaso que nesse Verão
Aurora em ti descortinei.
*
LUIS ALVES DA COSTA
"Abertura em dó maior «MÚSICA AQUÁTICA»
de G.P.Telemann(início)"
Fragmentos Musicais
*
II
Nada receies
Nada esperes
Tudo virá . . .
-
No entanto,
Quanta solidão
Ao apostrofares os deuses,
Teus iguais.
Quantos jardins de setecentos
Nos quais não pudeste passear,
Para que a Noite
Fosse escrita
E tudo o que há nos deuses
Se tornasse humano,
E a humanidade
Divinizada fosse.
-
Ao entrar silente,
Apócrifo repouso da casa dos mortos,
Vejo quanto nos enganámos,
Comuns mortais,
Filadelfos,
Antecâmara permanente
Da tua passagem fulgurante
Pelo Universo.
-
Não a nós
tuas vozes se dirigem,
Coros infernais
Cujas caveiras envolveste
Em véus translúcidos.
Não de nós
As lágrimas falam:
Tu invocas
O medo de cilindro escuro
Do teu interior,
Ave nocturna obscura
Ao Sul dos pensamentos,
Toque súbito e funesto
De tudo aquilo
Que julgaras um dia
Esquecido,
Os escombros da tua infância,
Tua Mãe,
Primeira Perséphone
A quem invocarás futuramente;
Os dias famintos
Naquela praça de Viena
Cujo chão árduo de percorrer
Viste diferentemente;
A sombra escura
Que finalmente
O dedo assim te apontou,
Da Morte epifania.
-
Quantos anos
De desde sempre
Escondem agora
Estes pilares de sono,
Esta melancolia
Infinita,
Mirabile visu
Do ocaso precoce . . .
-
A tudo quanto
Sob o benefício da eternidade,
tua mão ágil
Colocou,
Pedras basilares
Do Tempo inacabado
Que esta construção
Rectifica . . .
-
A tudo quanto
Ainda ecoa
Na solidez
Das frágeis paredes
Da Música,
Que não é reflexo
Da presença circular
Do cavo,
Clamor altíssimo
Ao perpétuo repouso,
Requiem de ti
Aos nossos melhores sentimentos . . .
-
Escuto, venero, oiço
Depois, Nessa escadaria crescente
Onde desfaleceste,
Deus oculto
Em simulacro de despedida,
Veio o arcanjo de espada dupla,
Sorridente ao fim da guerra,
Trazer-te pela mão frágil
Aos Interiores
De cuja existência
Tu já sabias.
*
LUIS ALVES DA COSTA
"Requiem K. 626 de «W. A. MOZART»
Fragmentos Musicais
GASTÃO CRUZ
Gastão Santana Franco da Cruz
Nasceu 20 de julho de 1941, signo de cancêr.
Faro, Portugal.
Doutorou-se em "Filologia Germânica", Faculdade de
Letras, Universidade de Lisboa,
Colaboração em varios jornais e revistas, exemplo"Seara",
fez parte do Grupo Teatral "Hoje" . . .
Movimento Literario "Poesia 61", junto com Csimiro Brito e
outros, poeta de grande significado no século XX,
para a Literatura Portuguesa. Lecionou
na Universidade "King's College" em Londres, Inglaterra.
Homenagens: Premio "Grande Premio da Poesia" A.P.E.
Associação Portuguesa de Escritores, 2004;
Premio "Correntes d'Escrita", 2009. . .
*
CANTOePALAVRAS
Hematoma, 1961; A Doença, 1963; Outro Nome, 1965;
Escassez, 1967; As Aves, 1969; Teoria da Fala, 1972;
Os Nomes, 1974; Crateras, 2000; Rua de Portugal, 2002;
Repercussão, 2004 . . .
*
I
Além do outono há o espaço azul dos ecos
há um espaço sem ar além do sono
coincidem nas pernas as artérias
em pausa vivas se concentra o sono.
-
As ruas circulares do horizonte
sobem a noite enredam-se na pele
charcos inversos cancelando as pontes
no sono coincidentes com os tectos.
-
É no sono a origem do espaço
que a vida inverte originando as pausas
e a dor move desenhos sobre a cinza.
-
Solta-se o choro breve da parede
e vem pisando gráfico o silêncio
sangue é o sono que pisa.
*
GASTÃO CRUZ
"Além do Outono há o Espaço azul dos ecos"
A Morte Percutiva
Poesia 61
*
II
As claridades mansas das areias
na sombra do obscuro do calor
abismo da extrensa
nudez da luz em terra de firmeza
contente magoada
árvores ervas claridades danos
ligeiras claridades das areias
a que na sombra da nudez do corpo
de luz um fogo seco
novo choro procura e novo dano
-
As claridades não se encontra dano
que no áspero choro a luz não fira
nem as extensas areadas fracas
claridades do mar
nem as escuras praias enganadas.
-
A mansidão das praoas os abismos
do fogo serenados
enfraquecidas luzes e obscuras
e nuas claridades
vivemos na tristeza sossegados
mas se o escuro
agita contra nós tranquilo e falso
o lume vão das dunas o da terra
árido ardente pó acumulado
é o calor da mágoa que a inerte
acumulada vida obscura rasga.
-
As claridades brandas não enganam
do sangue o pó a morte a estranheza
confusa troca da extensão da praia
da luz fraca da tarde
só dos banhos se mudam verdadeiros
sia a dia do fogo os mesmos danos
e se renova o pranto de firmeza
descontente magoado da nudez.
-
De claridade vive em terra estranha
a extensa cinza fraca luz das praias
de firmeza canção rasgando o fogo
magoado contente da nudez.
*
GASTÃO CRUZ
"Canção Sétima"
Outro Nome
*
III
Está tudo como antes até esta
perfeita liberdade de perdermos
com a vinda da noite o que
ainda tivermos a vida
por exemplo se tudo pois
assim puder perder-se
-
Está tudo como antes até este
medo intacto de tudo
se perder até que a névoa a
neve a noite por exemplo
suspendam o que ainda
houver por suspender.
-
Está tudo como antes até esta
completa suspensão da noite
por exemplo o desejo o prazer
a solidão por vezes a esperança
dos nervos está tudo como antes
até anoitecer.
*
GASTÃO CRUZ
"Está tudo como antes até esta"
A Doença


TOMÁS RIBEIRO
Tomás António Ribeiro Ferreira
Nasceu a 01 de Julho de 1831, signo de câncer.

Parada de Gonta, Tondela, Portugal.
Poeta, Político
Fez Direito, na "Universidade de Coimbra, 1855...
Pertenceu à "Academia Real de Ciências" de Lisboa, Portugal.
*
CANTOePALAVRAS
A Delfina do Mal; Sons que Passam, 1867; Vésperas, 1880;
Mensageiro de Fez, 1900; D. Jayme; Dissonâncias, 1890...

I
As flores d'alma que se alteiam belas,
puras, singelas, orvalhadas, vivas,
tem mais aromas, e são mais formosas,
que as pobres rosas num jardim cativas.
-
Sol benfazejo lhes aquece a rama,
lúcida cham, sem o ardor que mata;
banham-lhe as hastes, retratando as fontes,
límpidas fontes em ramais de prata.
-
que amenidade¹ nos vergéis suaves,
cantam as aves, sem cessar, amores.
Se há céu na terra, se aventura há nela,
d'alma singela se achará nas flores.
-
filhas das crenças, como as crenças puras,
de mil aventuras mensageiras belas,
se o vento um dia lhes soprar e as corte,
Deus! dá-me a sorte de morrer com elas.
-
Ao ermo embora, a divagar sozinho,
coroa o mesquinho por amor traído.
quando o remorso lhes não perturbe a calma,
nas flores d'alma há de encontrar o olvido.
-
Náufrago lasso a sossobrar nas vagas,
sem ver as plagas em que almeja um porto,
embora o matem cruciantes dores,
d'alma nas flores achará conforto.
-
O pobre monge, que de pé descalço,
dum mundo falso os areais percorre,
quando lhe entregam do martírio a palma,
às flores d'alma se encomenda, e morre.
-
As flores d'alma são belas,
mesmo sem terem cultura;
não há silveiras entre elas,
nem goivos de sepultura,
Tem uma só primavera
estes amenos rosais,
uma só; - ninguém pudera,
reverdecê-los jamais,
ou quando os congele o frio,
ou quando os queime o tufão,
nas chamas dum desvario,
na campa duma paixão.
Quando às tormentas da vida
em que alma e corpo abismara,
refoge o gasto suicida,
o tiro que ele dispara
com fria, gélida calma,
tem por bucha as folhas secas
das mirradas flores d'alma.
*
TOMÁS RIBEIRO
"Flores D'Alma"