quarta-feira, 6 de maio de 2009

142 - " OS ETERNOS MOMENTOS DE POETAS E PENSADORES DA LINGUA PORTUGUESA "

"Carro de Bois" Ilha da Madeira


HERBERTO HELDER
Nasceu em 23 de novembro de 1930, Funchal,
Ilha da Madeira.
Poeta, escreveu, para várias revistas em Lisboa. . .
*
CANTOePALAVRAS
O amor em visita, 1958; A colher na boca, 1961;
Poemacto, 1961; Lugar, 1962;
Electromicolírica, 1964; Humus, 1967; Retrato em movimento, 1967;

Ofício cantante, 1967; Vocação animal, 1971; Poesia toda, 1973; Cobra, 1977;
O corpo o luxo a obra, 1978; Photomaton e Vox, 1979. . .
*
I
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
-
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do Sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
-
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
Invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
-
- Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
-
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
*
HERBERTO HELDER
"Sobre o Poema"
Revista "Folhas de Poesia"

*
II
Uma noite encontrei uma pedra
Oh pedra pedra!
verde ou azul, de lado, como se estivesse morta.
encontrei a noite como uma pedra inclinada
sobre o meu corpo
puro, profundo como um sino.
Vi que havia em mim um pensamento
inocente, uma pedra
quando se entra na noite pelo lado onde
há menos gente.
Ou era um sino de um futuro
maior silêncio, tão
grande silêncio para se habitar só em gestos.
-
Aí eu poderia erguer-me na ponta
dos pés e ficar para sempre, como uma chama
que a noite viesse alimentar com sua
própria matéria que queima. noite -
- lenha para nossa leveza humana. Encontrei
uma coisa caída, talvez madura, um pouco
metida pela terra dentro.
Alguma dessas coisas da imobilidade, objeto
executado pelo sono,
onde eu passava os dedos apavorados e doces.
..................................................................
Encontrei uma pedra pedra
que não era uma colina com o mês de março em volta.
Nem era boca materna aberta
debaixo dos rios podres.
Uma coisa para se encostar a cabeça, oh não
para morrer. Para alguém subir
e de onde não era possível gritar. Uma pedra
sem folhas, um sino
sem pensamento. Encontrei algo que não andava
pelos montes nem seria atravessado
por uma flecha. E não sangrava.
que não se ouvia se cantava.
Talvez fosse fria
ou viesse abrasada sobra a ilusão.
...........................................................
Encontrei
um animal adormecido, uma flor hipnotizada,
uma viola ferozmente taciturna.
Era amarela só se eu levantasse a cabeça, ou era
tão escura na infância grande.
Encontrei uma verde pedra cravada no mundo
das pessoas, à entrada da candura,
tão admirável pelo azul da terra dentro.
Uma coisa incompreendida no instante
de morrer para a frente.
................................................................
Encontrei como quem arrasta para a noite
um símbolo pesado e ardente.
     Ou a ideia
de uma morte mais leve que o coração sem nada
do amor.
Se me perguntam, digo: encontrei
a lua, o sol.
Somente o meu silêncio pensa.
-
- Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira.
*
HERBERTO HELDER
"Lugar"
Fragmento
Poesia Toda
▬▬
MANUEL PEDRO PACAVIRA
Nasceu em 14 de Outubro de 1939, signo de libra.
Glungo Alto, numa fazenda "Lá Luínha", Angola, África.
Poeta, escritor, se envolveu com politica e foi preso político,
durante vários anos, depois de 25 de Abril , tornou a
se envolver com política mas desta feita, com cargos
como Ministro dos Transportes, 1977 . . .
*
CANTOePALAVRAS
Gentes do Mato, 1974; Nzinga Mbandi . . .
*
I
O filho da mãe do mulato. Pois claro. Que mais dele se
podia esperar? O caso não pode ficar por aí. Para
o Tribunal.Um advogado. O Dr. Reboredo Apolónio
Altino Rabaçal.Que muitos favores em tempos devera
ao finadoPereira Santos. Não custará a aparecer o
dinheiro para a papelada e outras coisas destas.
Quanto a testemunhas, é o que há de mais: o comércio
todo, quase. Se parece agora Boneca a uma gata
assanhada. Mas há os que dizem se parecer mais a uma
galinha velha em ovos chocos. A Vila férve. De mais outra
coisa não faça. A uma loja - às duas, às três, às quatro,
sobretudo às cinco: o Belmiro sapateiro que vai tentar
uma acção contra o tio-sogro.
- E faz ele muito bem. O seu a seu dono. Que se escuse o
Zanobe de estar aí a armar-se em muito esperto, que o
Dr. Rabaçal tem todas as manhas mais mil para os
enredar a todos. A ele e a irmã e quantos outros.
- E com muita sorte se não perdem a "Monte Verde" toda.
Mas nos subúrbios - à hora do almoço diante de um
funje servido de molhaço de cacusso seco-defumado
assado:
- O estoporo! . . . Sapateiro e basta, galego! . . . Uma acção ao
Tribunal contra quem lhe recebeu de boa-fé! . . .
Esses cangundos! . . .
- São umas cobras venenosas esses cabundas. Umas onças
que mais não merecem senão uns zagalotes no lombo.
Os bichos! . . .
- E por cima se vão rindo de a gente.
- Pois. Sas'o'ngo i kutolole o xingu. . .
E a rapaziada:
- É já! Agora! Não é tarde nem cedo de mais. Para um
ajuste de contas. Por um pagam todos. Que mesmo assim
não chegam a pagar-nos o que nos ficam a dever. Que não
é pouco. Fervem - dir-se-ia à procura de um tubo de escape
para descarga de raivas antigas. Acordavam: no próximo
domingo. Dia de jogo. Grande encontro com o Lucala.
- Não alinharemos. Nem com mil contos à vista. Já temos o
nosso Clube. Àquele de nós que alinhar com os gajos vamos
lhe gritar "Moços de fretes! Comprado! Desavergonhado!
Miserável! . . .Comprado por um bocado de farinha com
açúcar e três bagos de jinguba podre! Comprado por uma
palmadinha de bom rapaz nas costas, pobre de espírito!"
E vamos todos fazer claque aos de fora. Pois. Mesmo a perderem.
Se sair bordoada, é bordoada.
E foi de facto o que aconteceu.
Perdem os da Vila - e vitoria a rapaziada os de fora:
- Seis a zero! . . . Seis a zero! . . . Seis a zero! . . . Viva o
Lucala! Viva! . . .
Os colonos no ar. Explodem. E vão os da terra de mandar
vir com eles:
- Seus cabundas de merda, mal-agradecidos, ora digam
lá: se não fosse a nossa terra, se não fôssemos nós?
- Se não fossem vocês?! . . . Ai os negros, atrevidos! . . .
Uns macacos que a gente veio tirar a tanga e ensiná-los
a comer com garfo . . .
Mesmo na frente da casa Martins & Martins - o sô Domingos
Martins a apreciar. Com muita gente a passar. As senhoras
donas às portas e varandas dos primeiros andares
aproximando as cabeças umas das outras - para seguirem
com os olhos os homens que crescem histéricos para os
seus contrários.
- Filhos da puta, negros ordinários. Macacos! . . .
- Macacos, nós? . . . Nós macacos seus cabundas?! . . .
Vocês que fugiram a fome na vossa terra! . . .
E se pegam por fim as duas partes a bordoada. Não há
bordões, mas há aduelas. Deitaram mão a uns barris
vazios aí ao lado, aos montes. Uma arruaça. Cabeças
partidas. Sangue.
*
MANUEL PEDRO PACAVIRA
" capítulo 10"
Gentes do Mato
*
II
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
*
E cantavam, não tardando lhes ocorrer a canção da
casadoira apaixonada:
-
Nga kuatele o namorado
kala 'lesu dia njibela
Di tundila ku Natale
-
Tal melodia pela vez de mana Velinha, e as demais:
-
Aiué mama uê! . . .
N gikuate, ngondo bu'ê! . . .
Aiuê N gikuat'ê.
Ngondo buila ku mal'ê! . . .
Mais adiante
Ah me pede já, ah! . . .
Ah me pede já,ah! . . .
Me pede já ah! . . . ah! . . .
Me pede já, ah! . . .
Me pede já, ah! . . .
Me pede já na minha mãe
Vou morrer'ê! . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
*
MANUEL PEDRO PACAVIRA
"Mingota, capítulo 05" (fragmento)
Gentes do Mato

▬▬
CARLOS PIMENTEL
António Carlos Frota Tendinha Pimentel Teixeira
Nasceu a 24 de setembro de 1944, signo de libra.
Moçamedes, Angola, África.
Poeta,  frequentou a Universidade de Luanda, Faculdade de Economia.
Participou do movimento das F.A.P.L.A.(Forças Armadas Populares de Libertação de Angola). Pertenceu a U.E.A.(União de Escritores de Angola).Trabalhou em jornais e revistas . . .
*
CANTOePALAVRAS
Tijolo a Tijolo,1980 . . .
*
Cumprir uma opção
é dever
-
este "dever" é obrigação
com carácter objetivo
servir o povo
as camadas mais exploradas
as que terão por direito
por conquista alcançada
a direção deste país
-
Devaneio é falar
registando
inquietações cá de dentro
e se se afirma
que devaneio é sonhar
-
sim, eu sonho
viver
vendo o povo governar
-
povo quem é?
Aí a questão
uma luta
5oo.ooo mortos
centos mil aleijados
de mutilados
em 2 guerras de libertação
-
e se eu não viver
quando todo o povo governar
saberás que caí
lutando por um devaneio
que o povo vai orientar
-
mas não é isto que vou falar
não discuto certeza da vitória
falo de luta
-
e a luta é organizar
consciencializar
promover combate de sobrevivência
de Reconstrução
de planificação econômica
e de paz
na confiança no Partido
na orientação
na certeza
no marxismo leninismo
no nosso Guia
-
sem que esqueçamos
tão sempre
"disciplina-produção-vigilância".
*
CARLOS PIMENTEL
"Amanhã África"
Tijolo por Tijolo

▬▬
ARNALDO SANTOS
Arnaldo Moreira dos Santos
Pseudônimo Ingo Santos
Nasceu em 14 março de 1935, signo de peixes.

Luanda, Angola, África
Poeta, participou em diversas revistas, um dos fundadores da U.E.A.(União de Escritores de Angola)
Homenagens:
Prémio "Mota Veiga", Angola,1968.

*
CANTOePALAVRAS
Fuga, 1960; Quinaxixe, 1965; Tempo de Munhungo, 1968;
Poemas no Tempo, 1977;Prosas, 1977 . . .
*
Estaquei e interroguei-me a medo. Perdi o sentimento das árvores . . .?
Retive um segundo este pressentimento e depois deixei que a sua ação
me perdorresse lentamente. Breve despontou em mim uma lisa inquietude, incolor, silenciosa, como os passos do salalé nos corpos velhos.
Voltei a olhar a rua e senti-me empobrecido. Um
pouco mais nu sob as acácias. Minha combustão ao Sol das ânsias
sofridas deixou-me uma carcaça esfomeada de sonhos de cimento.
Endureço na têmpera desses sonhos, mas sem remorsos, apenas triste.
Teria perdido o sentimento das árvores. . . ?
Estranho este rastejar do vento entre as vagens das acácias *siras.
Estremeço sob o alarido dessas vagens
secas, que vão abrir sem esperança, sementes acobreadas  no asfalto.
Estou demasiado liberto destes destinos vegetais que já foram tão íntimos.
E afinal como seria fácil ligá-los ao cordão de emoções que entrelacei com as cadeirinhas de capim.
Rejuvenesço ao lembrar o porte das dignas mulembeiras, a quem eu puxava, turbulento, as barbas longas e *mulembava tranquinamente.
Os dias de Sol nos muxixeiros baixos e grotescos, onde eu empoleirava
os meus sonhos. As tardes de sumaúma sob as mafumeiras, em que
eu jogava ao ar os flocos brancos para que as andorinhas os colhessem
em vôo rasante. Recordo e apetece-me rir.
Rir alto como as acácias ébrias de risos vermelhos e que,
viviadas de amor, se entregam impudicas a todos os olhos, mas que escondem nos seus estames curvos prenúncios de destinos em cuja iniciação vivi a minha infância.
Quantas promessas, quantos segredos se entreteceram sob o refúgio destas sombras, sob estas grutas sem paredes de abóbadas verdes e sonoras.Volta-me aos lábios, incontível, um riso louco, insolente, que escamoteia os meus pensamentos do olhar deste policial, que me observa desconfiado.
Vou subindo o passado nesta rua, sob a culpa do presente sem misericórdia que escolhi. Tornei-me um homem do Sol, viajo acima destas copas verdejantes em maximbombos de 1º. andar e nem mesmo
na sombra total de noite me consigo evadir.
Sei que abaixo de mim continuam a crescer novas árvores
que não vivi e que oferecem os seus convites ao sonho, a homens novos. Sei que as acácias de S.Tomé vão em janeiro juncar os passeios de
borboletas desmaiadas. Sei que os jacarandás baixarão suas campânulas lilases, junto ao rosto dos namorados, ritmando suas
emoções indefinidas. Sei que uma asinha de Sol, caindo das acácias
amarelas, propiciará hoje ou amanhã a carícia esperada nuns cabelos negros. Sei que, numa cumplicidade secreta, novas atitudes se modelam lentamente sob estas novas sombras vegetais.
Sei-o com o desespero senil de um predestinado às fogueiras da vida.
E nem sequer protesto.
Para as minhas pausas de cansaço hoje já nada me resta senão as acácias vermelhas que conheci. E é sob a sua eternamente renovada
florida que me recolho, entre aquilo que espero e não espero, e descanso,
ouvindo a ansiedade do poeta que joga nas sortes infantis a sua vida
"Antera cai? Não cai?/Ela virá? Não vem?/É a hora de chegares . . ."
E é sempre sob essas velhas sombras companheiras que eu,
concreto, também repito a minha obsessão de náufrago enfeitiçado pelos horizontes vazios! - É a hora de chegares . . . É a hora de chegares . . .
(*siras- espécie de acácia
*mulembar- brincar nas raízes aéreas da mulembeira)
*
ARNALDO SANTOS
"Sombras Vegetais"
Kinaxixe e outras Prosas

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JOÃO MELO
Nasceu a 05 de setembro de 1955, signo de virgem.
Luanda, Angola.
Poeta, jornalista,publicitário, professor . . .
Cursou Direito na Universidade de Coimbra, Portugal e
Luanda Angola.
Morou no Brasil . . .
Homenagens: Prémio "Sonangol de Literatura", Angola;
Prémio "Sagrada Esperança", Angola . . .
*
CANTOePALAVRAS
*
Definição, 1985; Fabulema, 1986;
Canção de nosso tempo, 1991;
O Caçador de Nuvens, 1993;
Limites e Redundâncias, 1997;
Filhos da Pátria, 2001 . . .
I
. . . Isso era o que pensava José Carlos Lucas. Porém a
realidade, nua e crua, era muito diferente. Como
seguramente estais lembrados, ele não conhecia o
motivo que levara Maria de Lurdes à petrolífera,
naquela sexta-feira à tarde em que de conheceram,
mas como também já o revelei, ela foi à procura do
seu amante francês desaparecido há duas semanas.
Posso acrescentar, agora, que os seus passos não foram
conduzidos até lá pela saudade, pela paixão ou até
mesmo pelo ciúme, mas por uma razão de natureza
mais prática e comezinha, embora grave: o sacana
(adjectivo inevitável no caso a seguir descrito) do
francês ainda não lhe dissera absolutamente nada
acerca do filho que, anunciara-lhe ela duas semanas
atrás, tinha plantado na barriga dela;
tendo deixado abruptamente de falar quando
a notícia, inventou uma desculpa qualquer para sair
mais cedo e desapareceu até àquele dia em que
Maria de Lurdes decidiu procurá-lo pessoalmente.
O mais grave é que naquela empresa nunca tinha
trabalhado nenhum francês chamado Pierre Yves,
moreno, de estatura média e bigode de serapilheira.
Maria de Lurdes quis começar a xinguilar ali mesmo,
mas, tendo concluído que não lhe dava jeito,
pelo menos com aquela minissaia, resolveu sair,
xingando mentalmente o cabrão do francês até
à raiz mais profunda da puta que o pariu.
Foi então que ouviu alguém oferecendo-se,
aparentemente, para lhe dar uma boleia. Olhou
para aquela voz saindo de uma espécie de limbo e pensou,
de acordo com sua experiência, que, por vezes, levar
um gajo para a cama ajuda a desanuviar.
No dia seguinte, já tinha um plano perfeitamente
arquitectado na cabeça. Aquela figura cinzenta
que lhe caíra na rifa seria, por mais estranho que
isso possa parecer, a solução para o problema.
Estava resolvida: iria atribuir-lhe a paternidade
da criança. Como ela só estava grávida há um mês,
isso seria, em princípio, difícil. A única maka,
possivelmente, é que o francês era branco e o
homenzinho que agora se despedia dela no portão
do anexo, prometendo voltar à hora do almoço,
era preto. Se acaso ela conhecesse um pouco mais
cientificamente os mistérios da mestiçagem, não
estaria tão preocupada assim e, muito provavelmente,
agradeceria ao Criador, de modo espontâneo e
sincero, o facto de ser mulata (mesmo escura). De
qualquer forma, Maria de Lurdes, era uma pessoa
pragmática, pelo que
Quando o Bebé nascer, arranjo uma explicação
qualquer!, decidiu.
A vida, porém, além de dar muitas voltas e estar
repleta de paradoxos, também se caracteriza,
como diria Vinícius, pela frequência dos seus
desencontros. O que se passa é que, mesmo quando
duas pessoas se cruzam, como se cruzaram José
Carlos Lucas e Maria de Lurdes, raramente os
respectivos cronómetros individuais estão
devidamente sintonizados e harmonizados.
Por outras palavras: coincidências não são
necessariamente encontros! É por isso que as coisas
não correram exactamente como cada um deles
tinha mentalmente programado . . .
*
JOÃO MELO
" O Homem que nasceu para sofrer"
(fragmento)
Filhos da Pátria
*
II
. . . Agora, José Carlos Lucas está encostado a uma das
amuradas da Ponte 25 de Abril, sobre o rio Tejo, em
Lisboa. Vagarosamente, olha ao redor, tentando
descobrir algum sinal que lhe diga o que fazer.
É admirável como a consciência, quando não consegue
projectar nada nem sequer um palmo à frente
do nariz, tem a capacidade de regressar até às
mais longínquas regiões do passado,
permitindo sem protestar que as suas funções
sejam substituídas pela trabalho da memória!
A comproválo, José Carlos chega à desconhecida
província angolana do Kuando Kubango, onde
nasceu. Lembra-se dos seus tempos da escola
primária, antes de ir para o Bié fazer o
secundário e dali para Luanda. Tem saudades
da mãe e do pai. Como é que chegara até ali,
isto é, até àquela cidade cujas colinas não lhe
dizem absolutamente nada e onde Maria Lurdes
devesestar, seguramente, a carecer do socorro
dele? Gastara até ao último cêntimo os dólares
que tinha levado de Luanda, mas não tivera
absolutamente nenhuma notícia dela! De
certo modo, talvez tivesse sido melhor assim, pois
como é que iria explicar-lhe o seu derradeiro
fracasso? . . . José Carlos Lucas olha para baixo,
lentamente. Quando se lança da ponte, certo
de que, pela primeira vez, Maria de Lurdes não
se rirá dele, a sua única dúvida é se as águas
do Tejo são tão frescas e acolhedoras como as
do rio Menongue, lá no Kuando Kubango,
de onde nunca deveria ter saído . . .
*
JOÃO MELO
"O Homem que nasceu para sofrer"
(Fragmento)
Filhos da Pátria


▬▬

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