terça-feira, 5 de maio de 2009

144 - " OS ETERNOS MOMENTOS DE POETAS E PENSADORES DA LINGUA PORTUGUESA "




JORGE DE SENA

Nasceu a 02 de novembro de 1919, signo de escorpião,
em Lisboa, capital de Portugal.
Poeta, Crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor, professor de Literatura Portuguesa, no Brasil...
Engenheiro, pela Universidade do Porto,
Catedrático de Literatura Comparada,

e de Português na Universidade da Califórnia,
Santa Bárbara, Estados Unidos da América. . .
Seu corpo faleceu, em Santa Bárbara, Estado da Califórnia, E.U.A., 04 de junho de 1978.

CANTOePALAVRAS
Perseguição,1942; Coroa de Terra, 1946;
Pedra filosofal, 1950; As evidências, 1955;
Fidelidade, 1958; Poesia I, 1961; Metamorfoses, 1963;
Arte de Música, 1968; Peregrinatio ad loca infecta, 1969;
Exorcismo, 1972; Trinta anos de Poesia, 1972; 

Camões dirige-se aos seus contemporâneos, 1973;
Conheço o sal. . .e outros poemas, 1974; Poesia II, III, 1978;
Quarenta anos de servidão, 1979;
Sequências(pós-morte), 1980. . .
Ulisseia adúlterada(teatro), 1952;
O Indesejado(teatro), 1951; Sinais de fogo(ficção), 1978;
O físico prodígioso(ficção), 1977. . .

I
Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música de morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música damente espedaçada
de tanto ter sonhadao o que entretece,
sem côr e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.

Além do falso ou verdadeiro, além
do abstrato e do concreto, além da forma
e do conceito, além do que transforma
contários pares noutros par's também,
além do que recorre ou nunca vem
ao que se pensa ou se sente, além da norma
em que o não-ser se humilha e se conforma,
além do possuir-se, e para além
dessa certeza que outro ritmo dá
àquele de que as palavras têm sentido:
lá onde ouvir e não-vir se igualam
na mesma imagem virtual do na-
da - é que tu vais, ó música, partido
o nó dos tempos que por ti se calam.

tudo se cala em ti como a vida.
tudo palpita e flui como no leito
em que se morre ou se ama, já desfeito
o abraço do momento em que,sustida
a sensação da posse conseguida,
a carne pára a ejacular-se atenta.
Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta
esta glória de existir, trazida
a cada instante só do instante ser-se,
reflui em ti, liberto, puro,aflante,
certeza e segurança de conter-se
na criação virtual o renascer-se
agora e sempre pelo tempo adiante,
mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se
deste possível é a paz do amante.

JORGE SENA
"(Requiem) de Mozart"
Arte de Música
*
II
aos cinquenta anos sou um ser perplexo,
não como aos vinte, aos trinta, ou aos quarenta,
mas radicalmente perplexo. Não sei
se amo ou não amo aqueles que amo,
se odeio ou não odeio os que detesto.
Se me quero patriarca, pai de família, como acaba sendo,
ou se me quero livre pelas ruas noturnas
como quando não acabei de descobri-las
em décadas de andá-las, perseguindo
sequer o amor mas corpos, corpos, corpos.
sou de Europa ou da América? De Portugal
ou do Brasil? Desejo que toda a humanidade
seja feliz como queira, ou quero que ela morra
do cogumelo atômico prometido e  possível?
Não sei. Definitivamente, não sei.
Julgas que estou deitado num leito de rosas?
- perguntava ao companheiro de tortura Cuahutemoc.
Mas, mesmo destituído, preso, e torturado,
ele era o Imperador, descendente dos deuses.
Eu não descendo dos deuses. O corpo dói-me,
que envelhece. O espirito dói-me de um cansaço físico.
As belezas de alma, seja de quem forem, deixaram
 de interessar-me.
-
Resta a poesia que me enoja nos outros
a não ser antigos, limpos agora de esterco
de terem vivido. E eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei-de morrer
desesperado por não ter vivido. Aos cinquenta anos
nem sequer a raiva dos outros ainda me sustenta
o gosto e a paciência de estar vivo.
Outros que tentem e descubram:
que digam ou não digam é-me indiferente.
*
JORGE SENA
"Aos cinquenta anos..."
Quarenta Anos de Servidão
*
III
Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;
-
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi -
-
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
-
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.
*
JORGE SENA
"Quem muito viu..."
Peregrinatio ad loca infecta
*
IV
É como se sentisse que a vida me foge. É como se,
das pontas dos dedos, eflúvio inútil, um magnetismo se
escapasse inócuo, sem penetrar as pessoas e as coisas . É como se
eu sentisse em mim um vaso, um lago, um mar, e se
esvaísse o nível dele. É como se um motor em mim se
ralentasse pouco a pouco. É como se
a fala, a minha e a dos outros, soasse com surdina e se
perdesse sem tinido num lençol de neve. É como se
um frio me cobrisse resistindo a tudo, e se
nenhum entusiasmo, nenhum aquecimento, nada, se
mantivesse em mim que os ouço e sinto e me ouço. É como se
nem a mesmo a morte ou mesmo a sobrevida se
pudessem demorar mais do que isto. Se
ainda escrevo, estou escrevendo, escreverei, é como se
as palavras juntando-se criassem, mais do que um sentido se-
melhante a outros ou diverso, apenas um silêncio e se
fizessem fuga de que vivo só, alguém que assiste, mas não se
ouvindo e vendo, se
passasse ao longe tudo, e se
ouvisse e visse o que não se
ouve nem vê, Ou se,
em vez de nada, se
criasse nada, e se,
na melancolia de um sono imenso de que se
não adormece,
desse
um sono maior
do que o da morte ou do amor.
*
JORGE SENA
" Se"
Quarenta anos de servidão




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